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quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O pôr do sol da vida



Falar da minha mãe é quase tão tabú para mim como dizer-lhe que a amo abertamente. Foi sempre uma torre inalcansável, uma força bruta da natureza, uma mulher sem infância e juventude que lhe foram roubadas pelas condicionantes da vida. O amor que recebeu foi pouco (não por falta dos pais, mas por estar sempre longe deles) logo, ama como sabe, como todos nós. Como aprendeu, com uma carapaça de ferro.
Procurar colo da minha mãe é coisa que me custa. Beijos e abraços, também. Embora a tenha a viver comigo há sempre um fosso que não sei explicar.
E é quando recorro a  memórias de outros tempos, aqueles em que dependi dela, em que me ajudou a crescer, moldou a minha personalidade e me mostrou que me ama.

Em tempos muito felizes

- O casaco que me punha pelas costas
- Levar-me às costas (é baixinha) do carro para casa quando havía reuniões de amigos que se prolongavam até tarde e eu adormecia.
- Os beijos curtos e rápidos
- Quando me levava ao médico com uma expressão indecifrável.
- Quando tive uma hepatite grave e não me deixou ficar internada cumprindo à risca todas as recomendações médicas
- As histórias para dormir a sesta, em que adormecia ela primeiro de exaustão
- Quando me levou para a praia acampar 15 dias e me ensinou a ler e escrever (iam começar as aulas e eu estava atrasada em relação aos outros meninos. Impensável. Comprometeu-se com a professora e cumpriu)
- Nunca me deixar aos cuidados de ninguém em nenhuma circunstância
(recusou-se a ser internada duas vezes em Moçambique)
-As longas noites em que o meu pai estava ausente e não havia televisão, a ouvir ópera e a aprender a história.

Em tempos menos felizes

- Quando punha a mesa em cima de uma máquina de costura (ferramenta de trabalho e ganha pão) que se fechava para esse fim, não havia outra, de modo que se improvisava
- Quando cozinhava num fogão de campismo e o serviço de jantar eram três pratos de plástico, três copos, três colheres, três garfos e três facas
- Quando passava a ferro com ferro a carvão, por não termos luz. Ferro que mais tarde o meu pai pintou e ficou como objecto decorativo e dono de memórias.
- Quando ouvíamos os "Parodiantes de Lisboa" num transistor encarnado e ríamos muito.
- Quando me dava os últimos 20 escudos para ir e voltar da escola. O troco chegava a casa intacto.
- Quando não me deixou passar fome, mas só bebia leite e comia bolachas de água e sal
- Quando enfrentou o meu pai e foi sózinha minha encarregada de educação
- Quando me comprava as calças de ganga anuais numa loja da 1º de Dezembro (nas idas a Lisboa no Natal) e às vezes uns brincos nos "Porfírios"
- Quando pensámos que o meu pai estava morto na guerra civil de Angola por falta de notícias, mas não confessávamos as suspeitas uma à outra, embora chorássemos baixinho à noite na mesma cama.
- Quando se recusava a copiar modelos dos meus vestidos para as minhas amigas e dizia orgulhosa:  "Desculpe, mas é um modelo exclusivo para a minha filha." Os tecidos eram comprados ao quilo nas feiras, mas garanto que eram os vestidos mais lindos do mundo
- Quando me viu vestida de noiva. Saí do provador da "Loja das Noivas" e ví-a tão encarnada que julguei que rebentava. Não chorou de emoção. E não quis fazer-me o vestido (era modista)
- Quando a solução para os problemas e resolução das situações apareciam por intermédio dela. com uma clareza e discernimento únicos.

Tantas outras coisas de uma vida difícil que partilhámos. Mas feliz. Provas superadas e muitas formas de dizer Amo-te.

Agora no fim do caminho, sou eu que me preocupo, que cuido, que dirijo. Papéis invertidos.
Quando esteve no hospital há um mês pela primeira vez e agora quando a acompanho ao médico, tento  lembrar-me de como fazia comigo. Nada de expressões preocupadas, caras tristes.
Sou forte! - penso.
E dou comigo a sentir e perceber no quão diferente é. Também sou mãe e é muito diferente. A esperança que se deposita na cura e prolongamento da vida é agora limitada, com a certeza do fim próximo um dia destes. 
E é vê-la a desistir devagarinho.
É ver a minha torre a abandonar-se às intempéries ...
Ainda assim, temos a sorte de poder estar juntas. Eu de poder ajudá-la, acompanhá-la e zelar por ela. E ela tem-me a mim e à neta por perto.
Afinal, ninguém morre sózinho.

E curioso, há uns dias que me abraça prolongadamente quando chego a casa.





7 comentários:

C.F. disse...

Fizeste-me chorar...
Abraço forte.

Luísa Lopes disse...

C.F.
"Parir" estes pensamentos foi um exercício difícil. Como sempre sofro por antecipação, mas é a minha forma de me preparar para o que vem. Bejinhos querida

Ana disse...

Há amores que se confessam assim, sem palavras. São amores tão fortes, quanto o silêncio o pode ser.
Sois duas mulheres lindas, cada uma à sua maneira e ajudaram a criar uma outra menina/mulher linda.
Amo-vos e estou aqui.
Abraço siamês.

Luísa Lopes disse...

Ana
Somos pessoas com fragilidades e eu que sou desbocada não tenho medo de expressar os sentimentos.
Tenho outros...mas isso será para outro post.
Abraços siameses também para ti.

Paula disse...

No silêncio de um olhar se diz muitas vezes amo-te.
Tenho orgulho de ser tua amiga

Luísa Lopes disse...

Sim Utena, é mesmo.
Obrigada. :))

Coisas de Feltro disse...

Estou arrepiada. E tudo o que poderia agora dizer, acabo por apagar. Não encontro as melhores palavras.
Adoro-te amiga querida.